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3 de dezembro de 2025

De Papo Com...Digo Amazonas

Foto: Divulgação


Digo Amazonas lança “Qual Brasil?” e mergulha em 100 anos de disputas culturais para entender o país de hoje


Por: Mayara Abreu

Agradecimento: Karó Comunicação


O músico e compositor Digo Amazonas acaba de lançar Qual Brasil?, seu primeiro álbum à frente da banda Multidão, e carrega consigo uma pergunta que atravessa tempos, ritmos e disputas de identidade: afinal, que Brasil estamos retratando, vivendo e disputando?

Digo participou de diversas bandas ao longo da carreira, sempre transitando entre o rock e a percussão brasileira, terreno onde se sente mais em casa. Mas foi agora, “pela primeira vez como autor e compositor à frente de um trabalho”, que ele decidiu transformar anos de vivências, viagens, blocos de carnaval, estudos e inquietações em um manifesto musical.


O Brasil de ontem é o mesmo de hoje?

O ponto de partida de “Qual Brasil?” nasceu durante sua pós-graduação em percussão brasileira, quando Digo se aprofundou no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. O centenário do manifesto acendeu nele a constatação: muitas das disputas culturais de 1924 continuam vivas ou até mais acirradas.

Aquela disputa estética e identitária do modernismo, com o verde-amarelismo, tinha paralelos muito parecidos com a polarização que a gente vive hoje”, explica. “Achei muito interessante perceber como essas tensões são resquícios de 100 anos atrás — ou até de 500.

Inspirado por essa viagem no tempo, o álbum não tenta responder a pergunta que dá nome ao trabalho — ele a amplifica. Para Digo, a pergunta provoca mais do que qualquer tentativa de síntese: Qual Brasil vivemos? Qual Brasil queremos? Qual Brasil poderíamos ser?


Do estudo à criação: o álbum como amarração de uma vida inteira

Apesar da pós-graduação ter sido o estopim para o conceito, o álbum já vivia dentro dele há muito tempo. Digo compõe desde os 15 anos e participou de inúmeros coletivos e blocos ligados à cultura popular. O estudo formal foi menos sobre aprender e mais sobre organizar a bagagem que já existia:

A maioria das músicas já estava escrita, mas a pós me ajudou a amarrar a história, a entender que um álbum precisa ter coerência.

Essa organização acabou moldando a narrativa. “Qual Brasil?” funciona como um livro dividido em capítulos, com ordem pensada para que cada faixa se conecte à seguinte. Algumas músicas chegaram a entrar e sair do disco até os minutos finais: construção artesanal, como ele gosta de enfatizar.


Rock, maracatu, boi e coco: a antropofagia sonora de Digo

O disco se apresenta como um álbum de rock, e de fato é. Mas desde os primeiros segundos fica claro: esse rock pulsa nos ritmos do Brasil. Maracatu, coco, boi de matraca e outras sonoridades do país aparecem como espinha dorsal, não como ornamento.

Não à toa. Digo é percussionista antes de tudo ou, como prefere se definir, “batuqueiro”.

Essa mistura é natural pra mim. Sempre gostei dessa antropofagia: Chico Science, BaianaSystem, bandas que misturam o que vem de fora com o que é nosso.

A pós-graduação ajudou a nomear e lapidar intuitivamente aquilo que já estava nas composições. Em algumas faixas, ele ouviu e reconheceu: isso é coco. Em outras, isso é boi do Maranhão. O álbum abraça essa identidade sem perder a urgência do rock.


“Adubo Humano”: IA, Brás Cubas e a faixa mais canção do disco

Entre riffs pesados, rimas e gritos, Adubo Humano surge como momento de respiro, mas também como uma das faixas mais densas. A música fala sobre existir como indivíduo dentro do capitalismo contemporâneo, e foi se transformando ao longo dos anos até ganhar camadas decisivas durante a pandemia.

É nela que aparece a participação inusitada: uma inteligência artificial, criada como personagem feminina especialmente para a faixa.

Começamos a sentir que precisava de outra voz. Pensei: não tem coisa mais ‘adubo humano’ do que IA, já que a gente serve de dados pra ela replicar o que fazemos”, conta.

Foi só depois, com a faixa pronta, que ele decidiu trazer a citação de Brás Cubas, conectando o eu-lírico “defunto” à obra de Machado de Assis, também parte de seu diálogo com a história brasileira.


TI: Terra Indígena, Tecnologia da Informação e resistência

A última música composta para o álbum é também uma das mais simbólicas. TI traz a participação de jovens guarani da Terra Indígena e uma parceria direta com o Comitê Chico Mendes. Nada disso é gratuito: Digo é ativista socioambiental, trabalha lado a lado com lideranças indígenas e vê a música como extensão natural desse compromisso.

Para mim, música de luta é o que sai naturalmente. Não separo arte do ativismo. Faço parte desse movimento no dia a dia.

A ideia nasceu de um jogo de sentidos: TI como Terra Indígena e como Tecnologia da Informação, dois mundos que, no Brasil de hoje, acabam conectados pelas disputas por território, narrativa e futuro.


Qual Brasil? Uma pergunta ainda sem resposta e talvez seja esse o ponto

Digo Amazonas entrega um álbum urgente, múltiplo e inquieto que viaja do modernismo ao amanhã, do maracatu ao rock, da rua à pós-graduação, da floresta à cidade.

É um trabalho que se faz pergunta para provocar. E a resposta, como ele mesmo sugere, não está em uma faixa específica, mas no conjunto: nas camadas, nas contradições, nas histórias que se cruzam há séculos.

“Qual Brasil?” é menos sobre encontrar um país e mais sobre reconhecê-lo em todas as suas dores, vozes, ritmos e possibilidades.


Confira o bate-papo na íntegra:

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