Translate

18 de fevereiro de 2025

Rotting Christ e Miasthenia em São Paulo: noite de rituais primordiais abre em alta nota a leva de shows internacionais de 2025

Foto: Rafael Cunha Procópio


Rotting Christ - Carioca Club - São Paulo/SP - 08 de fevereiro de 2025


Por: Rafael Cunha Procópio

Fotos: Rafael Cunha Procópio (@rafaelcprocopio)


Menos de um ano após a sua última passagem pelo Brasil, a maior banda helênica de metal aportou em terras brasileiras para uma extensa turnê de dez datas para promover o seu mais novo disco de estúdio, Pro Xristou. Após Rio de Janeiro e Espírito Santo, foi a vez de São Paulo receber, no último sábado (08/02), o Rotting Christ, desta vez com a abertura por conta da banda brasiliense Miasthenia.


Seguindo a recente tendência de shows mais cedo, o Miasthenia subiu ao palco um pouco antes das 18h, com um Carioca Club injustamente vazio. Com um show enxuto, energético e corajoso, a banda não recorreu a músicas mais antigas e encantou o público presente com cinco faixas do seu recém-lançado sexto álbum, Espíritos Rupestres, pelos cerca de 30 minutos seguintes. Entre as músicas, a vocalista e tecladista Hécate explicou brevemente o conceito no novo disco e a sua inspiração em Lola Kiepja, a última Xamã Selk’nam, para o conto histórico d’A Bruxa Xamã que o permeia.

Expoentes do black metal pagão brasileiro e com três décadas de sólida carreira, a Estética Torta acertou em cheio ao ter convidado a banda para abrir esse show, justamente pelo forte conteúdo autoral e o constante mergulho às tão ricas culturas brasileiras dos povos pré-cabralinos. Prova de que a cena black metal brasileira não deixa nada a desejar se comparada com expoentes europeus como Emperor, Samael e Dimmu Borgir – para ficarmos com aqueles atos que, além das temáticas mitológicas, místicas e espirituais, têm os teclados como instrumentos essenciais às discografias em maior ou menor medida – e sequer precisa recorrer às mitologias estrangeiras para compor material pesado e envolvente. A aula de história brasileira veio de brinde.

Foto: Rafael Cunha Procópio

Merece destaque a habilidade do Miasthenia em transitar entre os sons mais tradicionais e vocais guturais do black metal – como na abertura com Evocação e Tapuia Marcha – as músicas com passagens mais melódicas – especialmente na seção intermediária de Bruxa Xamã e em Transmutação, que encerrou o setlist. O som da casa deu um brilho adicional aos instrumentos – muito bem executados pelos quatro músicos, diga-se de passagem –, salvo os estalidos pontuais que ecoaram do transmissor sem fio da guitarra de Thormianak, mas sequer chegaram a afetar seriamente a experiência do show.

Outro aspecto da música do Miasthenia que chama a atenção é a delicadeza de algumas passagens em meio à sonoridade turbulenta e densa do black metal, a exemplo do solo final de Thormianak em Tapuia Marcha ou a forma como os teclados de Hécate (com referências ao dungeon synth de Mortiis) se comunicam com a bateria de Riti – que está substituindo Lith ao vivo – no terço final de Tapuia Marcha ou com a adição do baixo de Aletea nas seções intermediária e final de Espíritos Rupestres. Funcionam como breves respiros para que o público pudesse recuperar o fôlego para uma imersão ainda mais profunda à ritualística indígena promovida pela banda. O culto aos ancestrais do Miasthenia explorou com desenvoltura os recônditos do black metal e deixou o público animado para o ato principal da noite.

Foto: Rafael Cunha Procópio

Público devidamente aquecido e agora com a casa mais cheia, após 1 hora de espera, a introdução atmosférica do Rotting Christ tomou conta do sistema de som do Carioca Club. Conhecidos de longa data dos brasileiros, os gregos esbanjaram simpatia, especialmente o mentor, vocalista e guitarrista Sakis Tolis, que, mesmo doente, interagiu com o público paulista em inglês e arranhou algumas palavras em português também. Não faltou energia à apresentação da banda, valendo um aceno especial ao feeling que Kostis Foukarakis dispensou aos riffs e solos de guitarra e à agitação do baixista Kostas Heliotis, sem qualquer prejuízo às hipnóticas linhas de baixo que marcam essa terceira “fase” da discografia do Rotting Christ – dominante no setlist.

Cabe já lançar mão da principal – ou talvez única – “crítica” ao show: a sub-representação do ótimo Pro Xristou em uma turnê que propõe divulgar o décimo quarto disco de estúdio completo da banda, com apenas duas faixas presentes (Pretty World, Pretty Dies e Like Father, Like Son), tocadas logo no primeiro terço do set. Diria se tratar de uma injustiça com o novo disco enquanto discos – embora já clássicos – como Κατά τον δαίμονα εαυτού e Aealo esbanjaram, cada um, três faixas do setlist.

Foto: Rafael Cunha Procópio


Foto: Rafael Cunha Procópio

Foto: Rafael Cunha Procópio


Tirado o elefante do palco, os corais certamente são o pano de fundo e fio condutor utilizado pelo Rotting Christ para costurar a ritualística do show. A introdução com Aealo serviu de alerta aos presentes que abraçassem o início da jornada, como um chamado à guerra. Esse senso de desolação em meio à batalha foi a ponte perfeita para introduzir Pretty World, Pretty Dies, mais cadenciada, entremeada por coros mais amenos e com uma bela troca de solos entre Sakis e Kostis, antes de a banda voltar ao álbum Aealo e, com Demonon Vrosis, abrir uma pequena fresta para a brutalidade que o público ouviria alguns minutos depois. A dinâmica entre o vocal raivoso e ríspido de Sakis e a bateria ritmada de Themis Tolis faz elevar a energia da casa – em espécie de transe coletivo – como poucas músicas conseguem.

Público cativado, Sakis não perdeu tempo em anunciar Κατά τον δαίμονα του εαυτού, que repete a bem-sucedida fórmula de riffs de guitarra rápidos e poderosos e devastação completa do kit de bateria, deixando evidente que há uma conexão indescritível entre os quatro membros da banda. Conexão ainda mais perceptível nessa interação entre os irmãos Sakis e Themis Tolis – ou Necrosavron, para os fãs mais antigos.

Antes de relembrar os “velhos” tempos, no entanto, abriram espaço para dois sons mais recentes para dar um “respiro” a todos. Após Sakis questionar quem já ouvira o novo disco, ecoaram as primeiras notas da bela e emotiva Like Father, Like Son. A música gerou uma comoção adicional, talvez por se tratar do principal single de promoção do Pro Xristou, sendo imediatamente seguida por Elthe Kyrie, do álbum Rituals, com linhas de bateria mais marcadas e com a presença de coros mais grandiosos e tensionados.

Foto: Rafael Cunha Procópio

Foto: Rafael Cunha Procópio


A porção intermediária do show foi dedicada à primeira trilogia de álbuns do Rotting Christ, cada um marcando a presença com uma música. Iniciando por King of a Stellar War, representante do excelente Triarchy of the Lost Lovers, o som funcionou muito bem como passagem do “novo” ao “velho” Rotting Christ. A bateria de Themis estava grandiosa e os riffs de Sakis primordiais. Sem nenhum tempo a perder, chamaram ao palco o bastião do black metal baiano Armando Beelzeebubth, da entidade Mystifier, para tocar o baixo de The Sign of Evil Existence, faixa curta e intensa do disco de estreia Thy Mighty Contract. Qualquer fôlego recuperado pelos fãs, algumas músicas atrás, foi essencial para encarar a faixa-título do segundo disco da banda, Non Serviam, que foi curtida por Beelzeebubth do palco, vendo de muito perto as pancadas que Necrosavron dispensava à sua bateria em meio aos berros latinos de Necromayhem de “não servirei”.

Ainda possuído pelo codinome Necromayhem, o quarto e último aceno ao animal primordial helênico veio na forma do cover de Societas Satanas do Thou Art Lord, banda paralela que Sakis Necromayhem mantém com o ex-Rotting Christ George “The Magus” Zacharopoulos. Com um ritmo mais rápido e violento, foi a desculpa ideal para o público abrir a maior e mais efusiva roda da noite. E é claro que a dose de riffs rápidos combinados com uma bateria dilacerante não ficou limitada a uma única faixa e também embalou In Yumen – Xibalba, anúncio de que a banda voltaria a prestigiar o material da última década e meia na parte final do show.

Afinal, junto ao furioso instrumental, o público pode notar a renovada presença dos mais evidentes e grandiosos corais que marcam a dobradinha de In Yumen – Xibalba e Grandis Spiritus Diavolos. Encerrando o set principal, a execução de The Raven – representante solitária do The Heretics – fez o público do Carioca cantar em coro acompanhando o belíssimo solo de Kostis. Como se fosse possível encerrar o show após essa intensa interação do público brasileiro, após alguns minutos a banda voltou ao palco para tocar Noctis Era, demonstrando o real comprometimento do Rotting Christ e de Sakis (lembremos, doente, tossindo entre as estrofes de diversas músicas) com os seus fãs.

Corações aquecidos, chegou a hora de público e banda se despedirem após 1h20 de um espetáculo de técnica, carisma, compromisso e misticismo. Claro que a atitude pessoal dos artistas ajuda na empreitada de (re)cativar os antigos e novos fãs, a exemplo do esforço em realizar meet & greets gratuitos após todos os shows, mas não só. Apesar de toda a polêmica e pecha que circunda o subgênero, o fascínio, a paixão e o culto ao verdadeiro metal negro persiste forte no submundo. A recente passagem do Rotting Christ pelo país só prova que quantas vezes vierem tantas vezes serão bem recebidos pelo público.



Agradecimento à Estética Torta pelo credenciamento e Carioca Club pela atenção

Nenhum comentário:

Postar um comentário