Translate

5 de agosto de 2021

Reedição em vinil roxo celebra disco atemporal e cinematográfico de Rita Lee Roberto de Carvalho

Foto: Universal Music Brasil


“Aqui estamos nós/ Turistas de guerra/ Bizarros casais/ Restos mortais do Ibirapuera”. Os versos iniciais de “Vírus do amor” – com toda a introdução densa – confirmam: o disco “Rita e Roberto”, de 1985, não seguia qualquer fórmula. Pelo contrário, um rock-pop-dark-deprê-extraterreno dava o tom.

Saiba mais em: https://www.umusicstore.com/rita-lee


Esse tom começava já na capa: o casal, em branco e preto e sem sorrisos, aparece em uma cena soturna, fotografada por Miro e com direção de arte de Felipe Taborda, na estação do Pari, região central de São Paulo. Além do clima mais pesado, a capa entrega outras duas características – talvez as mais marcantes do disco: a primeira é que as músicas são cinematográficas num nível dificilmente alcançado; a segunda é o espírito de São Paulo. É um disco urbano, cheio de referências à cidade natal de Rita. E não podia ter sido mais perfeito.

A combinação dark + cinema + São Paulo presenteou o universo com um dos melhores discos do rock/ pop. Frequentemente apontado por Roberto como um de seus trabalhos preferidos, o álbum foi feito sem qualquer pressa. Rita e Roberto passaram seis meses em dedicação total ao disco. Trancados no estúdio que a gravadora havia feito para o casal, em São Paulo, sem pressão e nem data limite para cumprir. E se jogaram nas demos. Fizeram, em casa e no estúdio, diversas fitas de todas as músicas do disco – e até de algumas que não entraram no LP. Elas foram evoluindo, até se tornarem as canções que conhecemos. Com o engenheiro de som, Moogie Canazio, Rita e Roberto registraram tudo e lapidaram cada música. É nítido, aliás, o papel de Moogie na captação da grandiosa qualidade técnica de som durante o processo de gravação.

“Vírus do amor”, a faixa de abertura e que já trazia a bateria eletrônica LinnDrum, foi uma das primeiras músicas do mundo a falar sobre AIDS. Na época, o vírus ainda não tinha sido denominado HIV (o que aconteceu em 1986) e Rita escreveu a letra ao perder grandes amigos para a doença. Uma curiosidade é que na primeira demo, Roberto fez a música como uma balada. Mas, quando Rita criou a letra, tão forte, ele refez a música toda. E o resto é história: “Vírus do amor” se tornou um dos clássicos da música e uma das preferidas dos fãs.

E por falar em preferidas, “Vítima” é outra delícia totalmente cinematográfica e paulistana. Uma homenagem ao filme “Janela Indiscreta” (1954, de Alfred Hitchcock), mas que se passa em São Paulo. “Do meu esconderijo no milésimo andar/ Espio noite e dia sua vida secreta/ O frio de São Paulo me faz transpirar/ Sou vítima/ Da sua janela indiscreta”, canta Rita na música, que na época ficou restrita ao círculo dos fãs e não foi para as rádios. Entretanto, 10 anos depois, se tornou um grande hit de Rita & Roberto ao virar tema de abertura da novela “A Próxima Vítima” (1995, TV Globo).

Com tamanha vocação para o cinema, o disco ganhou um especial na Globo, com requintes de grandes produções. E “Vítima” se passa justamente entre os prédios do centro de SP. Outra música que ganhou clipe no centrão foi “Gloria F”. Como na letra, a personagem pula do Viaduto do Chá e se transforma numa espécie feminina de Frankenstein, Jorge Fernando (o diretor do vídeo) tratou de colocar Rita “pulando” do viaduto. A saída foi jogar um manequim, vestido como Rita, lá de cima. E que caia em cima de uma perua kombi, como diz a letra da música. Curiosidades: num primeiro momento, “Gloria F” tinha uma letra diferente e iria se chamar “Sexy Frankenstein”. E, na faixa do disco, Herbert Vianna e Paula Toller participaram do backing vocal.

E os vocais da Rita no disco são perfeitos. Potentes e cristalinos, justos para a personagem dark que ela assume em boa parte do LP. 


Falando em personagens e em vocal de arrepiar, tenho que citar “Molambo souvenir”. Rita voltou às referências da rádio, de sua infância na Vila Mariana nos anos 50, e trouxe umas pitadas de Dolores Duran e de Maysa. A música pode ser descrita como uma bossa-rebordosa-deprê-sensual (que voz!) sobre um relacionamento amoroso que, nos dias de hoje, seria chamado de tóxico. A produção é incrível. Essa, aliás, é uma das faixas que conta com a percussão de Paulinho da Costa. E com a bateria de João Barone, que também toca em “Vítima” e “Não titia”. E a letra de “Molambo” é de uma poesia... Basta citar um trecho: “A nossa fase amor e paz/ foi porra-louca demais”. Uau! Aliás, esse disco todo é mais uma das provas da rara, inspirada e genial química da dupla Lee/ Carvalho nas composições.

E por falar em inspirações, os papos entre Rita e Elis Regina renderam “Noviças do vício” (que teve os jogadores de vôlei Montanaro e William no backing vocal). Rita conta que a letra foi inspirada no deboche dos comentários de Elis sobre as cantoras da então nova geração. Quem é que não queria ser uma mosquinha e voltar no tempo para ouvir esses papos entre as duas?

E sobre a nova geração de roqueiros? Temos “Yê Yê Yê”, que descreve perfeitamente o sucesso do rock BR na época, quando o roqueiro brasileiro deixou de ter cara de bandido e tomou as rádios e as TVs. E, vamos ser justos: todos desfilando nas avenidas que haviam sido desbravadas corajosamente por Rita quando o rock era maldito – para mulheres, então, nem se fala. E a letra de “Yê Yê Yê” não podia ser mais debochada e irônica.

“Nave Maria”, música de Roberto e letra de Caetano Veloso (única do disco que não tinha letra de Rita) tem toques fantasmagóricos e extraterrenos. Fala sobre Maria, com Jesus no seu ventre, e sobre o espiritual feminino. A interpretação de Rita é emocionante. A produção e o arranjo de Roberto, impecáveis. Como em todo o disco. Ah, uma informação curiosa é a da que antes de receberem a letra de Caetano, “Nave Maria” chegou a ter outra letra – escrita por Rita.

A fina ironia de Rita brilha nesse LP. E, como não podia deixar de ser, o autodeboche está presente na genial “Choque cultural”: “Eu entrei quente/ crente que estava abafando/ Quando tropecei no ego/ Fiquei cego/ E caí na real”. A letra fala sobre o show no primeiro Rock in Rio, que ela não gostou de ter feito, muito pela diferença de tratamento entre artistas brasileiros e gringos. Tanto que em um dos trechos ela repete: “Não senhor, eu não sou inferior!”.

Falando em letra, mesmo com o processo de redemocratização e o fim da ditadura, o órgão da censura continuou operando (ainda que bem menos ativo). E “Choque cultural” acabou vetada no primeiro momento por causa da frase: “Fui pra Machu Picchu/ Fiquei mucho putcho”. “Putcho” foi proibida e Rita não arredou o pé. Depois de alguns apelos ao órgão, ela foi chamada a depor pessoalmente. Entretanto, de acordo com documentos da gravadora enviados na época, encontrava-se “acamada, vítima da doença denominada catapora, adquirida de seus filhos”. E mandou o depoimento por escrito: “a referida palavra adequa-se ao contexto jocoso da letra (...) uma brincadeira sobre o palavrão, sem dizer explicitamente”.

Com o depoimento de Rita, “Putcho” acabou liberado como “testemunho da postura dos executivos da Nova República em respeito à produção cultural brasileira”. 


Por falar em “Choque cultural”, catapora e Rock in Rio, surgiram boatos de que Rita estava com leucemia. Ela havia ficado um ano longe dos holofotes, sem aparecer na mídia, e foi com uma peruca para assinar o contrato do festival. O disse-me-disse ficou mais forte ainda. E pensar que a peruca era apenas para não revelar o novo corte de cabelo, que seria mostrado no palco... O fato é que a fofoca rendeu uma composição deliciosamente irônica: “Não titia”. Com uma levada meio desenho animado, meio Broadway, a canção musicou o absurdo que aquela notícia havia se tornado.

A reedição da Universal Music nos traz dois presentes. O primeiro é que ela é luxuosa: além de manter o encarte e o poster do original, o disco vem em vinil translúcido roxo. O segundo é perceber que, em 2021, o disco de 1985 é atemporal. Esse é daqueles álbuns que a gente rola inteirinho na vitrola, lado A e lado B, faixa a faixa, sem pular nenhuma. Como se diz hoje: Rita & Roberto entregaram tudo nesse disco.

*Jornalista e editor, Guilherme Samora é estudioso do legado cultural de Rita


Agradecimento: Universal Music Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário